Sexta, 24 Abril 2020 07:33

A cada 11 minutos, um profissional de enfermagem que trabalha no tratamento contra a Covid-19 busca

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Por Patrícia Teixeira, G1 Rio.

A rotina de UTIs lotadas, a falta de equipamentos de proteção nos hospitais, o medo de contágio, as horas de plantão e o isolamento da família têm deixado muitos profissionais de enfermagem que atuam no front do tratamento contra o coronavírus com a saúde mental debilitada.

G1 obteve com exclusividade dados levantados pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e ouviu relatos desses profissionais que atuam nas unidades de saúde públicas e privadas no Rio de Janeiro. Leia abaixo na reportagem os depoimentos.

Em 20 dias, 2.533 profissionais de todo o país buscaram atendimento psicológico no programa “Enfermagem Solidária” do órgão, que funciona de forma gratuita durante 24 horas. Isso equivale a uma média de 130 pessoas atendidas diariamente.

O Rio de Janeiro está em segundo lugar no número de profissional nessa situação, representando 9,8% da procura (média de 12 por dia), atrás apenas de São Paulo, que tem 25,2% dos casos.

Na avaliação dos especialistas do Cofen, os problemas psicológicos são agravados porque esses profissionais não conseguem afastamento de seu local de trabalho.

 
“Muitos estão com depressão, pânico, alto nível de ansiedade, estresse e insônia e ainda sofrem com a rejeição", diz Doris Humerez, coordenadora da Comissão Nacional de Enfermagem em Saúde Mental do Cofen.

"As pessoas dizem que aplaudem, mas rejeitam os trabalhadores como se eles fossem passar o vírus. Eles estão além do limite. O mais difícil é conseguir uma licença ou alguns dias de folga para que se recuperem”, emenda Doris.

Choro e desesperoHospital Ronaldo Gazolla é referência para pacientes de Covid-19 no Rio de Janeiro — Foto: Reprodução/TV Globo

Hospital Ronaldo Gazolla é referência para pacientes de Covid-19 no Rio de Janeiro — Foto: Reprodução/TV Globo

A especialista revela que, na maioria dos atendimentos, há muito choro e desespero de pessoas que buscam orientações para conseguir seguir na batalha diária. Muitos contatos são feitos de dentro dos hospitais.

“Choram muito, quase todos ligam de dentro dos hospitais, nos seus horários de intervalo, ficam em média 30 minutos com nossos especialistas, mas já teve um caso que durou mais de três horas. Também teve uma grávida com medo de pegar o vírus. Ela pediu afastamento, mas não conseguiu”.

Veja os problemas mais relatados:

  • Crise de ansiedade antes e durante os plantões
  • Insônia e dificuldades para descansar
  • Depressão
  • Exaustão com o volume de trabalho
  • Medo do risco de infectar familiares
  • Anseios com a falta de equipamentos de proteção
  • Grande preocupação com a superlotação de UTIs e leitos
  • Sofrimento com a distância da família
  • Tristeza ao ver o quadro clínico dos pacientes graves
 A falta de testes na América Latina pode impactar o número de mortes devido ao coronavírus — Foto: Getty Images/BBC

A falta de testes na América Latina pode impactar o número de mortes devido ao coronavírus — Foto: Getty Images/BBC

Mulheres são as mais afetadas

O levantamento do Cofen mostrou também que as profissionais do sexo feminino são as que mais têm a saúde mental afetada, com 85,84% da busca por atendimento.

“Ouvimos muitas queixas. Essas mulheres sofrem com o ambiente pesado. Ao mesmo tempo que elas querem se proteger, elas também ficam preocupadas com os pacientes que precisam delas, sabem e não abandonam essa missão”, explica a coordenadora.

Entre as categorias, a dos técnicos de enfermagem lidera com 51,20%, seguida pela dos enfermeiros (39,65%) e a dos auxiliares de enfermagem (8,06%).

 Testes de pacientes com suspeita da doença — Foto: Getty Images/BBC

Testes de pacientes com suspeita da doença — Foto: Getty Images/BBC

Muitos desses enfermeiros, técnicos e auxiliares têm dois empregos -- e trabalham todos os dias por 12 horas, segundo a especialista.

 
“Isso em ambientes extremamente contaminados, correndo risco a todo momento. Usando saco de lixo no lugar do avental. É como se estivessem numa guerra sem escudo para se proteger”, explica.
 Profissionais de saúde colocam equipamentos de proteção individual contra a Covid-19 em uma estação de testagem por drive-thru em Stamford, Connecticut, no dia 23 de março. — Foto: John Moore / Getty Images via AFP

Profissionais de saúde colocam equipamentos de proteção individual contra a Covid-19 em uma estação de testagem por drive-thru em Stamford, Connecticut, no dia 23 de março. — Foto: John Moore / Getty Images via AFP

Depoimentos dos profissionais

A maioria deles relata os sintomas já descritos pelo estudo do Confen. A pedidos, os nomes de alguns deles são fictícios.

  • Ansiedade

“O hospital em que trabalho me dá todo o suporte e material de proteção, e mesmo assim a gente sente. Já estava há 30 dias fazendo plantão, até que tive o pior dia de todos. Acordei com taquicardia e trêmula, mas consegui me acalmar e fui trabalhar. Durante o plantão, esses sintomas voltaram ainda piores, o corpo inteiro tremia, suava frio e o peito apertado chegava a doer, mas precisava continuar. No final da tarde, tive outra crise de ansiedade. Nunca senti nada parecido na minha vida, não conseguia controlar, fiquei assustada com o que estava sentindo. Não está sendo fácil para nenhum de nós da área da saúde, diariamente vendo pacientes sendo internados, confirmar a Covid, e ver o agravamento. Diariamente vendo colegas apresentar sintomas e se afastar, vendo outros partirem. Orando a Deus por mim, pelos meus e por todos, pedindo que essa fase ruim acabe o quanto antes ou vamos pifar de verdade”, Paula Christiny, enfermeira de um hospital particular de Duque de Caxias.

 
  • Solidão e medo

“Temos medo, muito medo. Não é medo de sermos contaminados, é medo de contaminar quem amamos, nossos pais e filhos, porque todos nós da enfermagem achamos que estamos com o vírus, temos até receio de fazer o teste. Estamos deprimidos também, afastados de quem amamos, e, às vezes, ainda enfrentamos os olhares tortos dos vizinhos. Quando morre um colega de trabalho, nosso psicológico piora muito”, Juliana Almeida, técnica de enfermagem de hospital público no Rio.

  • Choro solitário

“Tirei a hora do meu descanso para chorar. Era uma madrugada, e eu só conseguia pensar naquele paciente que segurou a minha mão e implorou para não morrer. Quase todos pedem a mesma coisa. Esse paciente não resistiu, mas a imagem dele querendo viver não sai da minha cabeça. Tentamos ser porta-vozes da esperança, dizer que vai ficar tudo bem, que logo estarão em casa. Pessoas que não entraram tão mal vão para o tubo e morrem, de um dia para o outro. E para os que entram mal, a gente já sabe qual vai ser a sentença. Para mim, só resta engolir o medo, o choro, o cansaço e as dores”, Ana Carla, enfermeira de hospital público no Rio.

  • Quem cuida da gente?

“Estamos todos com crise de ansiedade e pânico, somos pessoas experientes, que lidam com óbitos com frequência. Mas dessa vez está sendo diferente. Porque os pacientes entram conversando, mas com falta de ar. E, em muito pouco tempo, pioram e morrem. Não temos o menor tipo de controle em relação aos pacientes e isso nos assusta muito. E quem cuida da gente? Ninguém. A batalha é diária tentando controlar nossa saúde mental”, enfermeira de hospital particular de Niterói que não quis de identificar.

Denúncias e cobranças

A deputada estadual Enfermeira Rejane, presidente da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), disse ao G1 que tem recebido muitas reclamações de profissionais que estão adoecendo com medo de contágio do coronavírus, devido à falta de equipamentos de seguranças em muitos hospitais.

 
“Recebi denúncias de profissionais de toda parte do estado dizendo que falta material para trabalhar e que estão com medo. O enfermeiro de UTI é altamente qualificado, tem capacidade para atender qualquer paciente em qualquer situação. O problema são os contratados para a pandemia, sem muito treinamento, sem EPIs...essas pessoas estão apavoradas”, afirma.

Ela explicou que apresentou um projeto de lei que obriga que as unidades de saúde repassem à Secretaria Estadual de Saúde informações referentes aos profissionais da área afastados com suspeita, com diagnósticos confirmados, internados e que morreram em decorrência do coronavírus.

A parlamentar disse ainda que tem cobrado diariamente das autoridades melhores condições de trabalho para minimizar os danos aos profissionais de enfermagem.

“Até profissionais com mais de 60 anos, com comorbidades, não conseguem licença nem pela Covid, quanto mais por problema psicológico. As pessoas saem dos plantões e choram ao volante, tem gente que nem consegue voltar para casa. Uma tristeza”, contou.

Prefeitura do Rio oferece ajuda

A Prefeitura do Rio, por meio da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), informou que criou o projeto “Saúde na escuta” para oferecer assistência psicológica aos profissionais da rede municipal de Saúde que estão na linha de frente do combate à pandemia de coronavírus.

 

O serviço funcionará por telefone ou por videoconferência, todos os dias da semana, 12 horas por dia, com duração de três meses. Os profissionais estarão organizados em turnos, seguindo todos os protocolos sobre o tema. O atendimento começa na próxima segunda-feira (27).