Quinta, 24 Outubro 2019 20:42

Abertura oficial da Flica levanta debate político-racial: 'Por que o Brasil tem tanto medo de lidar

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Por Itana Alencar, G1 BA — Cachoeira (BA).
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A abertura oficial da 9ª edição da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), nesta quinta-feira (24), foi marcada por debates políticos-raciais e saudações à autora homenageada do evento em 2019, Gláucia Lemos.

A primeira mesa oficial do evento, com tema "Cartografias do Brasil contemporâneo", foi realizada nesta tarde com um bate-papo entre a autora e historiadora paulista Lilia Schwarcz e a jornalista e escritora carioca Eliana Cruz.

A roda de conversa foi mediada pelo arquiteto baiano e diretor da Fundação Pedro Calmon, Zulu Araújo.

G1 resumiu, em frases, o que rolou no debate sobre o mapeamento do Brasil de hoje.

Eliana Cruz (à esquerda) e Lilia Schwarcz (à direita) na mesa de abertura da Flica em Cachoeira, no recôncavo baiano — Foto: Itana Alencar/G1

Eliana Cruz (à esquerda) e Lilia Schwarcz (à direita) na mesa de abertura da Flica em Cachoeira, no recôncavo baiano — Foto: Itana Alencar/G1

Eliana Cruz:

"A gente tem uma pálida ideia, uma pálida noção de quem somos. Não sei dizer exatamente qual foi o momento, mas eu resolvi tirar férias e comecei a pesquisar sobre uma série de coisas. Foi assim que eu comecei a escrever um livro"
"A gente vai vivendo a vida e esquece de estabelecer pontos com quem está do lado"
"Tem uma frase da Neusa Santos que diz: 'Uma das formas de adquirir autonomia é ter uma narrativa de si mesmo'. Essa frase me ecoava e foi aí que eu me dei conta de que, tudo o que eu sabia de mim e dos meus, era escrito por outras pessoas. Então eu tomei isso como uma tarefa. Escrever sobre o meu povo"
 
"Todo mundo que se debruça sobre histórias e narrativas negras faz o trabalho de devolver dignidades"
"Hoje, a gente só está colocando no papel coisas que nossos antepassados contavam"
"Ainda falta muita coisa, mas eu vejo um cenário muito diferente de quando eu tinha 19 anos. E isso é uma prova indiscutível de que nossos esforços estão avançando alguma coisa"
"Nós convivíamos com um Brasil autoritário paternalista: um sistema que mandava em tudo o que a pessoa fazia, mas com o ar de um grande pai. Isso explica o atual Brasil de cabo a rabo"
"Assumir um lugar que, de fato a gente tem nessa sociedade, de se apropriar dos espaços e não nos conformar com o que nos é oferecido é um caminho sem volta"
"Viver com essa espada na cabeça nos faz criar estratégias para não enlouquecer. Criar estratégias para não cair em depressão. É um exercício diário descolonizar o olhar"
"As pessoas finalmente estão gritando sobre a sexualização da mulher negra, e com toda razão. É muito conveniente para determinados grupos manter a mulher negra nesse local, de mulata gostosa"
"Precisamos desmontar essa narrativa violenta que nos persegue há séculos"
"É necessário que às vezes a gente mexa em algumas feridas para que possamos nos transformar"
 Primeiro dia da Flica em Cachoeira, no recôncavo baiano — Foto: Itana Alencar/G1

Primeiro dia da Flica em Cachoeira, no recôncavo baiano — Foto: Itana Alencar/G1

Lilia Schwarcz:

"Não se passa impunemente o fato de termos sido o último país a abolir a escravidão mercantil, porque alguns outros tipos ainda existem"
"Eu tomo muito cuidado para não dizer que a culpa é toda da história, porque nos coloca em um lugar passivo. Sabemos que se existe um legado disso, é porque estamos criando base para toda essa estrutura. Como disse Angela Davis: não basta não ser racista, tem que ser antirracista"
"Eu acredito que nós estamos vivendo uma batalha de retóricas históricas"
"Por que o Brasil tem tanto medo de lidar com a reparação?"
"Depois das eleições, de tantos debates sobre autoritarismo, para quem imaginou que teria um Brasil novo, eu digo: Bem vindo à nova-república-velha"
 
"Um chefe do executivo não pode agir como um grande pai. Não pode tratar o Brasil como a casa própria. E isso é um grande problema na nossa atualidade"
"A questão da escravidão e a inconsequente herança do racismo é extremamente danosa. Não teremos uma democracia enquanto continuarmos um país tão racista"
"O Brasil padece com uma vergonhosa desigualdade social e só a educação pode, de alguma maneira, quebrar esse gatilho"
"A violência e a insegurança são sentimentos legítimos"
"Armar a população não resolverá o problema da segurança no Brasil. Violência só gera mais violência"
"A sociedade negra sofre com duas mortes: a morte física e a morte da memória. E a gente só combate isso com o fortalecimento dos acessos aos espaços para essa população"
"Do segundo semestre de 2018 para cá, ao invés de nós escondermos nossa intolerância, nós resolvemos mostrá-la. E de uma forma terrível"
"A gente tem um país que se orgulha de ter a maior parada gay do mundo, mas que não reflete sobre o número de LGBTs assassinados no mundo"
"Não precisamos negar que temos um passado branco, europeu. Mas a gente precisa também contar sobre o nosso passado de outras perspectivas. A gente precisa falar sobre nossas diversas Áfricas. Sobre esses outros personagens que também fizeram parte e construíram a nossa história"
 
"O termo feminicídio só entrou na nossa legislação em 2015. O fato de nós termos demorado tanto para usar esse termo fala muito sobre os traumas da nossa história"
"A cultura é quase uma segunda pele e ela acaba naturalizando perversões. E essas aberrações da cultura criam sociedades doentes"

Primeiro dia da Flica em Cachoeira, no recôncavo baiano — Foto: Itana Alencar/G1

Primeiro dia da Flica em Cachoeira, no recôncavo baiano — Foto: Itana Alencar/G1