Segunda, 19 Abril 2021 11:45

'Nossa luta é diária', diz indígena na Bahia que já venceu prêmios de empreendedorismo feminino.

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No dia do índio, Luena Maria Ferreira dos Santos, de 38 anos, fala sobre desafios da vida e também como líder de associação de pescadores no sul do estado.

Por Danutta Rodrigues, G1 BA

Luena Maria Ferreira dos Santos, 38 anos. Indígena da etnia Pataxó, atualmente lidera uma associação de pescadores em uma tribo urbana de Coroa Vermelha, distrito de Santa Cruz Cabrália, no sul da Bahia. A luta pela sobrevivência que está no DNA de Luena reverbera a situação de abandono histórica dos povos indígenas, que resistem a conflitos, violação de direitos e ao estereótipo reproduzido até hoje sobre os povos que deram origem à nação brasileira.

Única mulher de uma família com cinco filhos, Luena perdeu os pais quando ainda era muito nova. Aos 9 anos, ficou órfã de mãe, e aos 15 perdeu o pai. Mãe de Margarida [16], Íris [15], Iasmin [6] e Lívia Vitória [3], de dois casamentos, a história de Luena é diretamente associada ao mar e os negócios. O trabalho começou cedo, aos 13 anos, apesar da desaprovação do pai, que defendia que apenas os irmãos de Luena deveriam trabalhar.

"Sempre tive um espírito livre, sempre quis minha independência", afirma a Pataxó.

Aos 21, ela casou com um belga e eles decidiram comprar um barco, que levou o nome da primeira filha. "Eu e ele começamos a pescar, eram tempos de fartura. Só que quatro anos depois ele faleceu. Eu passei a comprar os camarões e a tratar", disse Luena.

 

Apesar de ter parado de estudar aos 21 anos, por causa do casamento e trabalho, ela chegou a cursar o último ano do ensino médio. Mas, como ela mesma se orgulha em dizer, Luena já fez curso "de gente formada".

"Eu não paro de fazer curso, sou curiosa e meu sonho é ainda poder estudar com minhas filhas. Tenho mais de 13 cursos na parte de gestão financeira, contabilidade, administração", conta.

Anos depois da morte do marido, já em 2010, ela foi trabalhar na Associação dos Pescadores de Coroa Vermelha, onde já tinha uma equipe de mulheres que atuavam por lá.

Protagonismo feminino

Em duas gestões distintas, Luena assumiu a função de tesoureira. Depois, após conversa com o então presidente da associação, ela pediu, e convenceu, que ele passasse a liderança da associação para ela, mesmo com dívidas com contas de luz, água, entre outras. Porém, ele não imaginava que a composição da diretoria seria formada apenas por mulheres, o que foi contestado entre os pescadores.

"No início deu ciúme, eles começaram a questionar por não ter homens, mas aceitaram. Na minha diretoria só tem mulher. Fizemos uma votação e deu tudo certo. Eu que escolhi a equipe, que é só de mulheres", orgulha-se Luena.

"Não colocamos só indígenas, mas não indígenas também, que são esposas de pescadores. Temos o nosso grupo, da nossa diretoria. É o grupo das tigresas. Temos o nosso espaço", conta.

A indígena foi em busca de parcerias para quitar os débitos da associação e ainda conquistou melhorias para o grupo, que vive da pesca de peixes e, principalmente, do camarão.

"A gente conseguiu rádio para os pescadores. Foi uma luta de dois anos, conseguimos esse rádio e uma base completa também, que mantém a segurança no mar e o contato entre todos os barcos", conta Luena.

Foi com esse trabalho na Associação dos Pescadores Indígenas Pataxós de Coroa Vermelha que Luena conquistou o primeiro lugar na etapa estadual do Prêmio Sebrae Mulher de Negócios, em 2014, na categoria Produtora Rural. E, o segundo prêmio, veio na etapa nacional, que ela conquistou o terceiro lugar.

Além disso, ela faz parte do comitê do extremo sul da Bahia do setor da pesca. Segundo ela, todas as colônias e associações do extremo sul, que vai de Belmonte a Canavieiras, onde tem todos os presidentes, estão dentro desse comitê, onde há diálogo direto com uma empresa grande da região.

"Sempre falei de colocar a casa em ordem e temos parcerias para conquistar melhorias sempre. Ganhamos um projeto em 2019 no valor de R$ 270 mil, que é do governo. Participamos desse edital e conseguimos ganhar esse projeto, que é de uma cozinha industrial, onde vamos trabalhar com o resto do peixe, que já aprendemos a fazer isso, que é o bolinho do peixe, a linguiça do peixe, o espetinho do peixe", conta Luena.

Porém, com a pandemia, o projeto ainda não saiu do papel. A associação reduziu bastante o volume de pesca e o volume de venda, e agora fechou por causa do defeso do camarão. "Então, desde o ano passado que vinha em queda por causa da pandemia, mas ainda trabalhávamos, porque o foco é o camarão. E agora tem o defeso", disse.

Além disso, Luena conta que desde 2019 que a situação tem complicado para as marisqueiras e pescadores. "Teve o derramamento de óleo, depois falaram da doença que estava no peixe, o que ajudou a prejudicar ainda mais o pescador e a marisqueira. A pandemia só veio para piorar”, conta.

Desafios da pandemia

Segundo Luena, antes da pandemia, a visita para a venda dos peixes e do camarão era sempre presencial, além do marketing por telefone e até virtual. Porém, com o novo coronavírus, tudo mudou. "Nunca vi uma semana santa tão ruim de vendas [com a desse ano]. Tiveram as medidas de restrições, as pousadas todas fechando, vendemos bem pouco, só para os nativos aqui da aldeia. Foi um impacto muito grande", afirma.

"Fica difícil porque não tem trabalho. Às vezes tem uma ou outra que vai pegar, mas as vendas caíram muito. A gente vem vendendo, mas tem pouco", conta.
 

Luena conta que só tem ficado na associação durante a manhã. "Eu faço muitos contatos com os clientes, fico postando nas redes sociais sobre o trabalho também, que aí já passo os preços. Agora, com o defeso do camarão desde 1º de abril, não tem com o que trabalhar", afirma.

"Eu peço que a gente não venha sofrer tanto como a gente vem sofrendo. Tanta humilhação para conseguir seguro, conseguir auxílio. E não temos quem brigue por nós também", diz Luena.

Segundo ela, as mulheres da comunidade que são chefes de família têm entrado em depressão. "É uma doença que tem atingido muito os povos indígenas, as mulheres indígenas. Precisamos que olhem o nosso lado", alerta Luena.

“Eu espero que as autoridades, a comunidade em si, venham olhar para os povos indígenas, eu não me vejo trabalhando em outro lugar, a não ser nesse meio da pesca. Queria muito que olhassem pelos pescadores, e os indígenas...é muito impacto, é complicado, e com a pandemia só vem piorando", alerta Luena.

Luena tem um sonho, que é ensinar às filhas sobre os apetrechos da pesca, rede, é passar os ensinamentos que possui adiante. E sempre com consciência ambiental.

"A nossa luta é pela pesca artesanal, não aceitamos a pesca industrial, nada que venha maltratar o meio ambiente. Nós, que somos moradores, aprendemos a pescar, a sobreviver do nosso trabalho, da nossa profissão. Quando eu falo isso, vem uma tristeza na minha alma. Isso dói. Nós somos pescadores artesanais e estamos sofrendo muito", conta.

Os desafios impostos pela pandemia, e também por outras questões sociais que atingem as comunidades indígenas, não fazem com que Luena desanime. “Eu sempre fui uma pessoa que sempre aprendi a lutar, guerrear. Então, todas as mulheres indígenas têm um espírito muito guerreira, elas não abaixam a cabeça, elas correm atrás mesmo", afirma.

"Eu admiro muitas mulheres aqui. Eu nunca deixei ninguém me abater. Vinha uma coisa dentro de mim muito mais forte. Eu acho que esse espírito de guerreira, de indígena que nós temos, falava mais alto dentro de mim. Eu falo muito para minhas filhas: mesmo que muitos que não deem o valor, não se abatam”.

Além de todos os prêmios, todas as honras e o respeito que adquiriu na comunidade, Luena também foi escolhida para carregar a tocha olímpica por uma marca que patrocinou as Olimpíadas de 2016. Memórias que ela guarda até hoje, se orgulha e ostenta como exemplo.

"Nossa luta é diária. Onde eu for, eu represento a minha cultura. Ela faz parte do dia a dia da minha vida. Uso acessórios de pena. Quase todos os dias eu uso. E é repassado para minhas filhas também, que estudam em uma escola indígena. Eu vivencio dessa forma".

Já vacinada contra a Covid-19, apesar de ter ficado com receio da vacina em um primeiro momento, Luena faz um alerta sobre a imunização: "É muito importante para todos".

Indígenas e vacina

A Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento da Bahia (SJDHDS) informa que 18.737 mil indígenas aldeados na Bahia já foram vacinados com a 1ª dose de vacina contra a COVID-19 até o dia 11 de abril. Os dados são do Boletim Informativo da Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab), atualizados diariamente.

Ainda segundo o boletim da Sesab, 16.655 mil indígenas aldeados também já receberam a segunda dose da vacina contra o novo coronavírus.

Dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde, apontam que a Bahia registrou, até o dia 9 de abril, 1.007 casos de COVID-19 e 8 óbitos entre a população indígena. Atualmente, 78 indígenas estão com infecção ativa na Bahia.

A SJDHDS atuou junto à Sesab na articulação junto às comunidades indígenas com o objetivo de garantir o atendimento à todas as comunidades do território baiano.

Dados da Coordenação dos Povos Indígenas da SJDHDS apontam que a Bahia tem hoje 33.045 mil indígenas de 26 etnias, localizados em 192 comunidades de 39 municípios baianos.