Vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton disseram que desconheciam as irregularidades e sempre atuaram dentro da lei. Ação da polícia resgatou mais de 200 trabalhadores "em situação degradante". Eles foram contratados para trabalhar na safra da uva.
Por Ana Júlia Griguol e Gustavo Foster, g1 RS e RBS TV.
Os empregados que trabalhavam em situação análoga à escravidão na colheita da uva em Bento Gonçalves, na Serra, passaram a descrever as violências e privações que alegadamente sofriam. Em relatos à RBS TV na manhã desta sexta (24), os trabalhadores narraram situações em que sofriam espancamentos, choques elétricos, tiros de bala de borracha e ataques com spray de pimenta.
"A maioria foi espancado, humilhado, várias coisas aconteceram aqui. Fui violentado no banheiro, me bateram. Cheguei lá e nós comíamos comida azeda. Nós trabalhávamos demais, trabalho escravo. Lá, eles estavam em posse de armas, ameaçando nós. Teve gente que tomou até tiro de bala de borracha", conta um trabalhador alojado no ginásio Darcy Pozza após o resgate.
Outro trabalhador resgatado afirma que, do quarto em que dormia, conseguia ouvir as sessões de espancamento a outros empregados.
"A gente trabalhava de 6h da manhã até meia-noite, 1h da manhã. Quando eu ia chegar para pedir para ir embora, a Polícia Federal chegou, fez essa operação e ajudou a gente. (Sentia) muito medo. Do lado do meu quarto era todo dia que batiam nos meninos lá. Choque, bicuda, tudo nos meninos", conta.
De acordo com o MTE, as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton contrataram uma empresa de serviços de apoio administrativo que oferecia a mão de obra. O responsável por essa empresa, Pedro Augusto de Oliveira Santana, de 45 anos, natural de Valente (BA), chegou a ser preso, mas vai responder pelo crime em liberdade porque pagou fiança no valor de R$ 40 mil.
O advogado dele Rafael Dorneles informou que vai se posicionar assim que conversar com o cliente.
A operação foi realizada por PRF, MTE e Polícia Federal (PF) após três trabalhadores procurarem a PRF em Caxias do Sul dizendo que tinham fugido de um alojamento em que eram mantidos contra sua vontade. No local, os trabalhadores foram encontrados "em situação degradante". De acordo com o gerente regional do MTE em Caxias do Sul, Vanius Corte, foram apreendidos no local artefatos que possivelmente serviam para violentar os empregados.
"Nossa fiscalização apreendeu no local uma máquina de choque elétrico e spray de pimenta que era usado contra os empregados que reclamavam da situação. É uma situação escandalosa de tratamento das pessoas", relata Corte.
Dívidas e atraso no pagamento
Um dos trabalhadores conta que, junto dos colegas, veio da Bahia para trabalhar na colheita da uva com a promessa de salários superiores a R$ 3 mil, além de acomodação e alimentação. No entanto, ao chegarem ao RS, os trabalhadores enfrentavam atrasos nos pagamentos dos salários, violência física, longas jornadas de trabalho e oferta de alimentos estragados.
Também eram coagidos a permanecer no local– que era pequeno e estava em más condições – sob a pena de pagamento de uma multa por quebra do contrato de trabalho.
"Alguns diziam que tinham recebido um adiantamento, mas nunca tiveram pagamento do que foi prometido. Em contrapartida, tinham essa indicação: 'vai lá e compra no mercadinho que te vende fiado', e esse mercadinho praticava preços elevados. Foi identificado um saco de feijão a R$ 22. O empregado ficava sempre devendo e não conseguia sair sem pagar a conta, não recebia o salário e ficava essa situação, de ficar preso no local por conta da dívida. Isso foi uma das coisas que caracterizou o trabalho escravo, além dessa história das agressões", conta o gerente regional do MTE.
Repercussão
O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) diz que as vinícolas que faziam uso de mão de obra análoga à escravidão durante a safra da uva na Serra do Rio Grande do Sul podem ter que pagar direitos trabalhistas às mais de 200 pessoas resgatadas durante uma operação policialem Bento Gonçalves, na quarta-feira (23).
"As pessoas que tomaram esse serviço, as pessoas que foram beneficiadas por esse serviço, também podem ser responsabilizadas. A gente chama isso de responsabilidade subsidiária. Primeiro, o empregador tem a responsabilidade. Se ele não pagar, as pessoas que trabalharam em determinada vinícola, que prestaram o serviço lá, podem cobrar, e nós vamos chegar nesse ponto, dessa vinícola que se beneficiou desse trabalho", afirma.
Em nota, as empresas afirmaram que desconheciam as irregularidades e sempre atuaram dentro da lei.
Notas das vinícolas
Aurora
A Vinícola Aurora se solidariza com os trabalhadores contratados pela empresa terceirizada e reforça que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão.
No período sazonal, como a safra da uva, a empresa contrata trabalhadores terceirizados, devido à escassez de mão-de-obra na região. Com isso, cabe destacar que Aurora repassa à empresa terceirizada um valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas.
Além disso, todo e qualquer prestador de serviço recebe alimentação de qualidade durante o turno de trabalho, como café da manhã, almoço e janta.
A empresa informa também que todos os prestadores de serviço recebem treinamentos previstos na legislação trabalhista e que não há distinção de tratamento entre os funcionários da empresa e trabalhadores contratados.
A vinícola reforça que exige das empresas contratadas toda documentação prevista na legislação trabalhista.
A Aurora se coloca à disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos.
Garibaldi
Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa Oliveira & Santana no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada. Informa, ainda, que mantinha contrato com empresa diversa desta citada pela mídia.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos.
Salton
A empresa não possui produção própria de uvas na Serra Gaúcha, salvo poucos vinhedos situados junto a sua estrutura fabril que são manejados por equipe própria. Durante o período de safra, a empresa recorre à contratação de mão de obra temporária. Estes temporários permanecem em residências da própria empresa, atendendo a todos os critérios legais e de condições de habitação. A empresa ainda recorre, pontualmente, à terceirização de serviços para descarga. Neste caso, o vínculo empregatício se dá através da empresa contratada com o objetivo de fornecimento de mão de obra.
No ato da contratação é formalizada a responsabilidade inerente a cada parte. Neste formato, são 7 pessoas terceirizadas por esta empresa em cada um dos dois turnos. Estas pessoas atuam exclusivamente no descarregamento de cargas. Através da imprensa, a empresa tomou conhecimento das práticas e condições de trabalho oferecidas aos colaboradores deste prestador de serviço e prontamente tomou as medidas cabíveis em relação ao contrato estabelecido. A Salton não compactua com estas práticas e se coloca à disposição dos órgãos competentes para colaborar com o processo".